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A ORIGEM DO CRISTIANISMO

A ORIGEM DO CRISTIANISMO

Para compreendermos a crença cristã, alguns antecedentes (até mesmo à vida de Cristo) fazem-se importantes. Retroagindo 300 anos antes de Cristo – ao cenário da dominação macedônica sobre o território dos gregos, através de Alexandre Magno – poderemos localizar nosso ponto de partida. A tendência interpretativa da historiografia mais relevante sobre o cristianismo, que domina as discussões acadêmicas, retoma, exatamente esse momento, pois projeta sobre ele a existência de um protocristianismo.
Assim, no transcurso do império macedônico, construído a partir de Alexandre, estariam elementos importantes de percebermos: categorias mentais e meios expressivos da filosofia, os quais, séculos depois, serão utilizados na apresentação do cristianismo e no esclarecimento de sua mensagem. Através dos macedônicos liderados por Alexandre Magno a prática de fusão entre a cultura grega e outras culturas, presentes entre os povos conquistados, originou o helenismo, responsável pela instrumentação de formas de pensamento que sustentaram a mensagem cristã.
Em 336 a.C., Alexandre deparou-se com a civilização grega, após já ter dominado Tebas, avançou sobre Atenas. Em 334 a.C. a conquista macedônica sobre as regiões mediterrânicas, com auxílio dos gregos reunidos na Liga de Corinto, desejosos de vingarem-se das guerras médicas e libertarem as cidades submetidas, prenunciava que Alexandre faria jus a seu título de Magno.
O modo como Alexandre estabeleceu sua dominação – e foi seguido por seus sucessores – desencadeou sobre a África, a Ásia e as regiões mediterrânicas a eclosão de uma civilização helenística que procede diretamente da civilização grega clássica. De tal modo, a língua, os gêneros literários, o estilo artístico e a concepção de governo e de organização social, de origem grega, disseminaram-se, atingiram os romanos e se incorporaram à dominância cultural do Império.
Enquanto isso, a cultura hebraica estava em decadência, devido, principalmente, à destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C. e à revolta de Bar-Kochba em 132-135 d.C. (evento em que o exército romano repreendeu os hebreus). Esses eventos coagiram os hebreus a se projetarem em outros meios adversos à sua cultura, o que minou o desenvolvimento de uma relevância cultural dos hebreus entre os romanos. A cultura hebraica, a partir disso, isolou-se e se restringiu.
Conforme nos coloca Stephen Steinberg (1965) o judaísmo deve ser observado não simplesmente como uma religião, mas como uma etnicidade. Os judeus observavam a Lei, dentro de seu gueto, e acabaram se restringindo à aculturação.
Quando Jesus iniciou suas pregações na Galileia o Império Romano havia estabelecido a paz em diversas regiões que viviam em atrito por meio de um exército numeroso, cobrança de impostos e certa tolerância à governabilidade local, que incluía a liberdade de cultos e tradições. Vivia-se a época da pax augustana, ou seja, um momento de relativa tranquilidade. Jesus nasceu na época do primeiro Imperador, chamado Otaviano Augusto.
Com a morte de Augusto, Tibério permite que o Senado o aponte como imperador, com o nome de Tibério César Augusto (Tiberius Caesar Augustus). Sob o governo de Tibério, Jesus Cristo pregou o evangelho durante três anos.
Após a morte de Cristo, doze de seus discípulos passaram a ensinar sua doutrina e expandir o conhecimento das Escrituras Judaicas do Antigo Testamento. Nesse período, o cristianismo que subsistiu por meio de seus seguidores começou a ser perseguido pelos judeus, que consideravam todos os crentes em Cristo traidores do judaísmo. Todavia, a perseguição ganhou relevância histórica somente quando passou a ser feita pelos imperadores romanos.
Os judeus helenizados associaram-se ao grupo que aderiu à fé cristã em um primeiro momento, sendo que, por volta do século I, os maiores segmentos judaicos dos principais centros, como Alexandria, já tinham traduzido a Torá para o grego, liam e escreviam também nesta língua. Converteram-se por meio de vínculos familiares, vínculos conjugais e lealdades a chefes de famílias. Desse modo, aliaram-se aos marginalizados que tinham se tornado cristãos um grupo de judeus ricos convertidos, tidos, inclusive, como intelectuais, formados na cultura helênica. Dentre eles estava Paulo de Tarso. Paulo, ainda jovem, partiu para estudar o farisaísmo em Jerusalém e reunia em si elementos da cultura helênica.
Com a adesão de Paulo à Igreja Cristã, os não judeus passaram a ser considerados na pregação dos apóstolos e seus sucessores. Além disso, a mensagem cristã ganhou contornos mais nítidos e próximos aos signos reconhecíveis pelos grupos eruditos, os quais figuravam entre a elite romana.
O neoplatonismo, junto aos letrados do Império, era uma corrente filosófica disseminada e presente nos debates públicos. Com o advento dos discursos dos apóstolos defendendo a superioridade do cristianismo sobre o paganismo ficou evidente para os eruditos, que aderiram à nova fé (VEYNE, 2009, p. 23).
A conversão a uma religião, conforme nos coloca Rodney Stark, implica no interesse por uma nova cultura e na capacidade efetiva de dominar uma nova cultura (STARK, 2006, p. 50). A cultura helenística foi responsável por promover a aderência de uma elite de estudiosos à mensagem dos cristãos. Uma série de notáveis pagãos – os apologistas – se converteram e passaram a fundamentar pontos da crença cristã e desenvolver uma doutrina da fé essencial para formar uma nova cultura.
Nos anos 200-300, entre os pagãos letrados o cristianismo era vivo e frequente. Durante os dois primeiros séculos depois de Cristo, a população cristã era pequena, mas bastante forte em Roma. As pregações públicas e fenômenos relatados como milagres eram promotores de um crescimento exponencial no número dos adeptos, o que preocupava alguns governantes romanos, em especial, Nero.
Esse imperador, em 64 d.C., segundo Suetônio, teria incendiado Roma e acusado os cristãos de terem perpetrado o incêndio. A partir disso, Nero passou a perseguir os cristãos e foi o responsável pelo martírio dos dois principais apóstolos: Pedro e Paulo. No século seguinte, o imperador romano Septímio Severo decretou que a negativa dos cristãos em renderem-lhe culto como deus vivo era uma afronta ao Império e por isso os cristãos foram perseguidos, martirizados e mortos. No ano de 250 d.C., houve a grande perseguição de Décio e, em 300 d.C., a de Diocleciano, que se seguiu devido à mesma motivação de Severo.
Segundo o historiador Paul Veyne (2009), no século IV, ao deixarem de serem perseguidos pelos romanos a partir de 312 sob as ordens de Constantino, os cristãos constituíram um grupo que passou a ser favorecido em detrimento do paganismo. Isso aconteceu porque no início do século IV o Império romano havia sido dividido entre quatro dirigentes – uma forma de garantir a melhor dominância das regiões devido à extensão que o Império tinha chegado.
Na parte Ocidental, que englobava a Gália, a Inglaterra e a Espanha, dominava o imperador Constantino, imperador romano que promoveu o Edito de Milão – uma série de cartas escritas aos governadores do império romano proclamando que aos cristãos deveria ser permitido o culto religioso, sem dolo.
Na sequência, foi concedida uma série de privilégios que acabou por fortalecer o cristianismo. Segundo Daniel-Rops, em sua obra “A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires”, a Igreja, agora reconhecida, passou a ter o direito de ser ajudada a reconstruir as suas ruínas: o culto, agora lícito, teria condições para poder ser praticado (DANIEL-ROPS, 1988, p. 410).
Constantino não transformou o cristianismo em religião oficial do Império Romano, que continuou a ser fundamentalmente pagão. Mas, promoveu condições para que, a partir da chamada paz constantiniana, propiciada pelo Edito de Milão, o cristianismo se disseminasse cada vez mais. Constantino passou a construir igrejas católicas e favorecer o clero com doações, isenção de impostos e dispensa do serviço militar obrigatório. Também concedeu às igrejas o direito de receber herança. Mesmo assim, o império permaneceu pagão. A fé cristã do imperador era de domínio privado, o paganismo era tolerado.
Entre 324 e 330, Constantino transferiu a condição de capital do império da cidade de Roma, na Península Itálica, para a cidade de Bizâncio, na parte oriental do império romano. Assim, Bizâncio passou a se chamar Constantinopla, a cidade de Constantino. Com este deslocamento de região do imperador, o cristianismo na parte oriental se fortaleceu mais ainda.
O helenismo presente na meditação sobre as verdades em relação à divindade produziu em Alexandria eruditos convertidos ao cristianismo que se dedicaram a defender a fé cristã frente aos usos e interpretações distorcidas dos pagãos. Foi o caso de Eusébio, de Cesaréia, que se tornou bispo da Igreja Católica no século IV. As Escrituras hebraicas são retomadas e valorizadas por meio da sistematização da justificativa do cristianismo aos homens, pela eloquência de Eusébio, que escreveu a “História Eclesiástica”, obra em que retrata a instauração do cristianismo no Império Romano.
Os cristãos passaram a viver sob um código de comportamento fundamentado ideologicamente, o que alterava sobremaneira a moral do Império Romano. Uma nova moral sexual e de trato nas relações sociais se instaurou, segundo Peter Brown (1989, p. 252). Neste sentido, foi realizada uma série de reuniões de bispos para disciplinar os fiéis e estabelecer respostas às apropriações que os pagãos faziam de pressupostos cristãos, em que se destacam o Concílio de Niceia de 325 e o Concílio de Constantinopla de 381. nda.
Em 395, o imperador Teodósio promulgou o Edito de Tessalônica, tornando o cristianismo a religião oficial do Império Romano. Nesse momento da igreja primitiva, a crença cristã exerceu um apelo positivo junto aos cidadãos bem estabelecidos. Membros, amigos e progenitores em altos escalões – frequentemente, dentro da família imperial – se multiplicavam. Com essa associação às classes abastadas, a incorporação de uma nova moral foi facilitada, pois logo os populares passariam a imitar as novas realidades sociais que se instauravam, derivadas da moral cristã.

MUDANÇAS SOCIAIS

A moralidade trazida pelos cristãos alterou a sociedade romana. As mulheres, por exemplo, na crença cristã, tinham um status elevado – diferente da realidade da tradição greco-romana, em que a mulher era colocada em segundo plano. Para os cristãos, a dignidade da mulher era a mesma do homem e isso se configurou como uma novidade.
As relações matrimoniais cristãs pressupunham a castidade, a monogamia, a indissolubilidade matrimonial – elementos estranhos para a prática dos romanos. O infanticídio feminino e o aborto foram perdendo espaço pois o cristianismo proibia estas práticas. Os casamentos deviam observar a fidelidade e a castidade, algo incomum entre os romanos da elite, que frequentemente se divorciavam na busca de dotes e de apoios políticos.
A ajuda mútua, o socorro aos necessitados e vitimados por epidemias e guerras passou a ser uma prática cristã que criou uma rede filantrópica entre as comunidades, recebendo muitas doações de mulheres ricas. O poder político interferiu na sociedade, seguindo a moral da religião oficial do império, e os sacrifícios de animais para os deuses pagãos passaram a ser interditados, assim como as lutas de gladiadores. Os praticantes de pederastia passaram a ser condenados à morte.
No mundo romano, a beneficência tinha um caráter político, pois quando se praticavam doações ou auxílios pressupunha-se uma relação de troca, com vantagens para o benfeitor. Foram comuns, para acalmar as revoltas urbanas, as doações de cereais e a promoção de jogos públicos, como a luta de gladiadores, por exemplo. Mas essas ações apenas refletiam um interesse político de trazer uma pacificação que as armas do exército nem sempre garantiam.
Por outro lado, a prática de ajuda mútua dos cristãos possuía um sentido humanitário e religioso, fundamentado na exortação moral cristã ascética. A caridade cristã refletida no auxílio aos pobres, doentes e viúvas era uma nova realidade, uma nova cultura que aos poucos foi sendo incorporada.
Transcorridos quase cem anos do Edito de Milão, que deu a liberdade de culto aos cristãos na extensão do Império Romano, a presença dos povos bárbaros na parte ocidental era uma realidade. As populações das províncias romanas progressivamente se cristianizavam e se incorporavam à igreja. Nas cidades, o cristianismo se torna comum, mas nas zonas rurais do império o que prevalece é o paganismo. Aliás, o termo pagão advém de paganus, termo aplicado pelos romanos aos camponeses, de forma pejorativa dando a denotação de rusticidade e falta de modos urbanos (BROWN, 1999). Com o advento do cristianismo, “pagão” tornou-se símbolo de politeísmo e de práticas da antiga religião do panteão romano.
Um ponto interessante de ser notado em relação às contribuições do cristianismo para uma mudança social, ainda na época do império romano, é que nos centros urbanos passaram a existir pontos estratégicos missionários e povoados de cristãos que eram tutelados por bispos. Com a presença de várias cidades do império com grande número de cristãos, além do bispo, também um presbítero passou a ser responsabilizado pela administração da fé. Os bispos eram iguais em autoridade. Entretanto, algum deles podia distinguir-se por dotes pessoais.
Com o aumento de tamanho da população cristã instituiu-se uma diocese. Deste modo, a eleição de dioceses se comunica com o aumento de fiéis, mas também possui relação com a criação de novas cidades. Um agrupamento de dioceses formava uma província eclesiástica. A reunião de várias províncias eclesiásticas formava um patriarcado, sendo os cinco principais do Império os patriarcados de Alexandria, de Antioquia, de Roma, de Constantinopla e de Jerusalém.
Com a tradição hebraica, os cristãos possuem o elo de igual crença em um Deus único que garante a ordem moral do mundo dos homens, a crença nos profetas e a crença na vinda do Messias. A partir de Cristo, insere-se a essa ideia a preparação incessante para entrar no Reino de Deus, após a vida terrena, opondo, assim, a vida segundo a carne da vida segundo o espírito.
De tal modo, a vida espiritual se torna um novo critério de juízo, visto que o homem, através da fé em Cristo, passou a participar da graça, conquistada pela morte e ressurreição. Nasce a ideia da reunião dos homens em uma comunidade universal e se associa ao nome cristão o termo católico, que quer dizer universal, o que significa que não existem prerrogativas para se aderir a fé, não existe uma etnicidade particular, nem um conjunto de características, a não ser a fé em Cristo.
O cristianismo católico colocou o valor de cada homem na capacidade de decidir viver em conformidade com o exemplo de Cristo. Mas a condição fundamental para viver em conformidade com Cristo era a possibilidade de compreender o significado de sua mensagem – e essa tarefa era própria da filosofia. Assim, a filosofia cristã dedicou-se antes a encontrar um caminho pelo qual os homens poderiam compreender a revelação em vez de conhecer novas verdades. Nesse sentido, desenvolveram-se os dogmas da Igreja Católica.
Segundo Agostinho de Hipona, importante bispo do século IV, na obra “A cidade de Deus”, cada homem explora como pode, melhor ou pior, os segredos da Sagrada Escritura (2000, p. 1452). Sem dúvida, alguns filósofos demonstraram compreender a utilidade moral que a filosofia grega, utilizada como instrumento, propiciaria à retórica cristã e escreveram, bem como realizaram pregações públicas, que se constituíram como importantes fontes históricas para estudos.
Nesse sentido, o cristianismo promoveu uma nova sociabilidade para os romanos, retomando o sentido da fidelidade ao Império, situando-a na expressão da mesma fé do governante. A noção de fides era fundamental nas relações entre os romanos, pois implicava em obrigações, reciprocidade e apoio de uma clientela em relação a um senhor. No novo âmbito do império cristão, essa relação se manteve atrelada à fé cristã.
A oficialização do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 395, pelo imperador Teodósio, através do Edito de Tessalônica, abriu portas para que a filosofia cristã pudesse atuar na legitimação da política.

POLITICA

Um império cristão exigia uma nova justificação para o poder do governante, visto que o sentido de autoridade para os romanos estava construído sobre crenças pagãs. Com Otávio Augusto, Roma conheceu a associação do governante com a ideia de deus encarnado, mas isto não era mais crível em uma sociedade cristã. De fato, não podemos ignorar a influência que as Sagradas Escrituras produziram sobre a cultura ocidental a partir dos romanos.
A realização de cultos ao governante remonta ao início do período helenístico, com o domínio de Alexandre sobre toda a região da Ásia Menor. Anterior a isso, não temos notícia desta prática de elevação de um líder à condição de divindade nas cidades gregas. Com a chegada de Alexandre como rei / imperador (basileus) e seus sucessores, construiu-se a ideia de que o poder emanava de Alexandre e não da cidade. Deste modo, as cidades gregas estabeleceram cultos aos governantes helenísticos como uma tentativa de aquiescer a um novo tipo de poder, o dos reis gregos.
Esse poder se tratava de uma novidade. Sob o domínio romano, a prática de culto aos governantes como forma de retribuição (e novos pedidos) às benesses por eles concedidas já se tornara tradicional nas cidades da Ásia Menor. Assim, no início do Regime do Principado, em 27 a.C., quando o senado romano conferiu a Otávio o título de Augusto, rapidamente se desenvolveu o culto à figura imperial do princeps surpreendentemente a partir de uma iniciativa das províncias romanas na Ásia menor.
Segundo Thomas Woods, o cristianismo é o principal veículo de promoção da ideia de civilização após a desintegração do Império Romano, de tal modo que nossas próprias ideias contemporâneas em relação ao belo, o bom e ao que devemos buscar como promotor de desenvolvimento social advém de um arcabouço teórico de base cristã (WOODS; THOMAS, 2008, p. 11). Sendo assim, é natural que o cristianismo tenha se incrustado na estrutura da política, visto que esta era praticada e teorizada a partir do desenvolvimento de justificativas aceitas socialmente.
Quando o império se torna oficialmente cristão (no século IV), antes mesmo de se completar um século, as estruturas políticas romanas estão definitivamente suplantadas. O império romano, que era essencialmente urbano, estava em processo de ruralização e a cidade foi cercada por mosteiros e conventos muito povoados (ARIÈS; DUBY, 2000, p. 280).
Não apenas esta mudança geopolítica foi derivada da adesão à nova fé, mas também outras mudanças estruturais aconteceram. A partir do século IV, as legislações romanas trouxeram a figura do imperador associada às virtudes cristãs e o bem comum da política inserido dentro da perspectiva de fim último cristão, admitindo por exemplo, que era na vida após a morte que se teria a redenção e não na vida terrena. Ademais, ao governante passaram a ser cobradas práticas cristãs que alteraram as práticas costumeiras da política. O assassinato de opositores é substituído – na teoria pois muitas vezes a prática se mostrou diferente – pela misericórdia e pelo perdão.
A submissão intelectual de cidadãos cultos, tanto no Império do Oriente como no do Ocidente propiciou uma sistematização lógica das crenças cristãs. Os concílios, que eram reuniões dos bispos católicos para tratar de questões disciplinares e dogmáticas acabaram contando com a frequente participação do imperador, que passa a utilizar esse espaço para fundamentar a lógica política de seus domínios.
Assim, no concílio de Constantinopla podemos perceber que a delimitação da submissão hierárquica das sedes cristãs das cidades à ordem de prioridade estabelecida pelo primado de Roma sobre Constantinopla, desta sede episcopal sobre Alexandria e desta sobre Antioquia também reflete a hierarquia de administração e poder político do Império Romano (RUNCIMAN, 1977, p. 33).
Outro fato de destaque é a associação do governante ao título de defensor christianistas, o defensor da cristandade. Com a interação de grande parte do império com a conquista e apropriação de povos bárbaros que se estabeleceram em territórios que eram dos romanos, a garantia de dominância cristã sobre regiões também trazia a autoridade romana, tanto pela adesão a uma fé oficial como pela dissipação cultural.
Havia uma necessidade de se construir unidade e concentração de autoridade na figura imperial romana, a qual foi conseguida com a associação de seu cargo com a condição de sagrado. A escolha de um rei na tradição judaica advém de um pedido do povo a Deus e, por isso, trata-se de uma escolha divina sobre um homem considerado justo e fiel à divindade.
No cenário romano, a partir do século IV, período da antiguidade tardia, o direito divino de governar é construído por meio da monarquia sacratíssima, a qual visa colocar um crivo moral sobre as ações de contestação do poder do governante legítimo, muito frequentes nos sucessivos governos que se seguem no período. Desenvolve-se um culto imperial a partir desta ideia, o qual foi seguido pelas monarquias romano-germânicas que se estabeleceram no território dos romanos.
Assim, além de imitarem o imperador romano (imitativo imperii) pela repetição do uso de vestes e cerimoniais especiais, os monarcas romano-germânicos também cunham moedas, fundam cidades, favorecem com doações as igrejas, buscam junto aos bispos a fundamentação teórica de sua legitimidade ao receber a unctio (unção de óleo sacro em sua cabeça, como sinal de sua escolha pela participação nos dons divinos e no cumprimento das ações convenientes à graça).
As tribos bárbaras – visigodos, francos, suevos, ostrogodos, vândalos etc. – em maior ou menor grau, tinham um caráter bastante simples de sua realeza: seu fundamento era a força, o prestígio guerreiro, não o Direito; a noção (abstrata) de res publica ficou restrita aos âmbitos religiosos – a Igreja foi a grande mantenedora da tradição romana.
Neste cenário, veremos vários monarcas tentando se associar a imagem de Constantino na busca de que isso legitime uma expressão de cristianismo da parte deles, mais puro e mais idealizado do que o de seus concorrentes políticos. O rei dos francos, Clóvis, tentará se impor como o novo Constantino. Ademais, a adesão a hierarquia da igreja católica de membros ligados às famílias senatoriais romanas e de uma nobreza que participava da vida política colocava em relação bastante estreita a justificativa ideológica cristã do poder político.

REINOS CRISTÃOS

Os germânicos começaram a deslocar-se para terras do centro e sul da Europa e foram atraídos a entrar no Império Romano a partir de suas fronteiras, nos primeiros séculos da Era Cristã. Eventualmente, o governo imperial admitia o ingresso de povos inteiros em seu território. Diversos reinos romano-germânicos se formaram, dentre os quais os reinos romano-germânicos visigótico (na atual Península Ibérica), ostrogótico e, posteriormente, o lombardo (na atual Itália), anglo-saxões (na atual Grã-Bretanha) e franco (na atual França). Uma preocupação, no entanto, era de que estes povos se cristianizassem, dessa forma missionários, vindos do Império, introduziam-se entre os bárbaros. Em um primeiro momento, os godos aderiram a religião cristã, mas sob uma forma herética, o arianismo.
O poder do bispo de Roma foi reconhecido pelo imperador romano Valentiniano III, com a publicação do Edito da Supremacia Papal, em 445. A partir disso, os romanos conduziram um processo de “redistribuição” da civitas cristã, ou seja, da ideia de romanidade cristã, integrando esses povos considerados de cultura inferior às formas de cultura delineadas pela tradição romana cristianizada.
Diocleciano e Constantino lideraram este processo que foi dominado pela crise devido a uma série de heresias cristãs que foram se sucedendo.
A instrumentalização do cristianismo e sua institucionalização social minimizou o duro golpe que as guerras políticas internas, o empobrecimento e a mistura das famílias nobres com a massa do povo acabaram por desferir na identidade romana, pela perda daqueles que eram considerados os primeiros e verdadeiros romanos, os patrícios, da linhagem sagrada que remontava à fundação da própria Roma.
A necessidade de uma maior unidade para o Império implicava na procura por uma nova ideologia impulsionadora e unificadora que propiciasse a restauração, a renovação e o renascimento do antigo esplendor e glória de Roma. Esta ideologia foi forjada dentro da igreja católica, o que explica o grande crescimento da fé cristã tanto em suas funções junto à sociedade quanto em seu caráter político-administrativo.
Nos séculos IV e V os bispos passam a acumular novas funções sociais e econômicas e foram relevantes nos reinos romano-cristãos que se formaram: Isidoro de Sevilha na Hispânia visigoda, Martinho de Tours, no reino dos francos, entre outros.

Na parte oriental do que era o império romano, no entanto, não existiram invasões bárbaras e essa região permaneceu como herdeira da tradição oriental dos gregos. O distanciamento entre as duas partes do império, a ocidental e a oriental engendrou diferenças significativas na igreja também porque a cristandade helenística do oriente não estava exposta à aculturação que a parte ocidental alimentava com as monarquias romano-germânicas. Essas diferenças acabaram levando ao Cisma do oriente, que foi a separação entre as igrejas de Bizâncio (antiga Constantinopla) e de Roma em 1054.

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