A
ORIGEM DO CRISTIANISMO
Para compreendermos a crença cristã,
alguns antecedentes (até mesmo à vida de Cristo) fazem-se importantes.
Retroagindo 300 anos antes de Cristo – ao cenário da dominação macedônica sobre
o território dos gregos, através de Alexandre Magno – poderemos localizar nosso
ponto de partida. A tendência interpretativa da historiografia mais relevante
sobre o cristianismo, que domina as discussões acadêmicas, retoma, exatamente
esse momento, pois projeta sobre ele a existência de um protocristianismo.
Assim, no transcurso do império
macedônico, construído a partir de Alexandre, estariam elementos importantes de
percebermos: categorias mentais e meios expressivos da filosofia, os quais,
séculos depois, serão utilizados na apresentação do cristianismo e no
esclarecimento de sua mensagem. Através dos macedônicos liderados por Alexandre
Magno a prática de fusão entre a cultura grega e outras culturas, presentes
entre os povos conquistados, originou o helenismo, responsável pela
instrumentação de formas de pensamento que sustentaram a mensagem cristã.
Em 336 a.C., Alexandre deparou-se
com a civilização grega, após já ter dominado Tebas, avançou sobre Atenas. Em 334
a.C. a conquista macedônica sobre as regiões mediterrânicas, com auxílio dos
gregos reunidos na Liga de Corinto, desejosos de vingarem-se das guerras
médicas e libertarem as cidades submetidas, prenunciava que Alexandre faria jus
a seu título de Magno.
O modo como Alexandre estabeleceu
sua dominação – e foi seguido por seus sucessores – desencadeou sobre a África,
a Ásia e as regiões mediterrânicas a eclosão de uma civilização helenística que
procede diretamente da civilização grega clássica. De tal modo, a língua, os
gêneros literários, o estilo artístico e a concepção de governo e de
organização social, de origem grega, disseminaram-se, atingiram os romanos e se
incorporaram à dominância cultural do Império.
Enquanto isso, a cultura hebraica
estava em decadência, devido, principalmente, à destruição do templo de
Jerusalém em 70 d.C. e à revolta de Bar-Kochba em 132-135 d.C. (evento em que o
exército romano repreendeu os hebreus). Esses eventos coagiram os hebreus a se
projetarem em outros meios adversos à sua cultura, o que minou o
desenvolvimento de uma relevância cultural dos hebreus entre os romanos. A
cultura hebraica, a partir disso, isolou-se e se restringiu.
Conforme nos coloca Stephen
Steinberg (1965) o judaísmo deve ser observado não simplesmente como uma
religião, mas como uma etnicidade. Os judeus observavam a Lei, dentro de seu
gueto, e acabaram se restringindo à aculturação.
Quando Jesus iniciou suas pregações
na Galileia o Império Romano havia estabelecido a paz em diversas regiões que
viviam em atrito por meio de um exército numeroso, cobrança de impostos e certa
tolerância à governabilidade local, que incluía a liberdade de cultos e tradições.
Vivia-se a época da pax augustana, ou seja, um momento de relativa
tranquilidade. Jesus nasceu na época do primeiro Imperador, chamado Otaviano
Augusto.
Com a morte de Augusto, Tibério
permite que o Senado o aponte como imperador, com o nome de Tibério César
Augusto (Tiberius Caesar Augustus). Sob o governo de Tibério, Jesus
Cristo pregou o evangelho durante três anos.
Após a morte de Cristo, doze de seus
discípulos passaram a ensinar sua doutrina e expandir o conhecimento das
Escrituras Judaicas do Antigo Testamento. Nesse período, o cristianismo que
subsistiu por meio de seus seguidores começou a ser perseguido pelos judeus,
que consideravam todos os crentes em Cristo traidores do judaísmo. Todavia, a
perseguição ganhou relevância histórica somente quando passou a ser feita pelos
imperadores romanos.
Os judeus helenizados associaram-se
ao grupo que aderiu à fé cristã em um primeiro momento, sendo que, por volta do
século I, os maiores segmentos judaicos dos principais centros, como
Alexandria, já tinham traduzido a Torá para o grego, liam e escreviam também
nesta língua. Converteram-se por meio de vínculos familiares, vínculos
conjugais e lealdades a chefes de famílias. Desse modo, aliaram-se aos
marginalizados que tinham se tornado cristãos um grupo de judeus ricos
convertidos, tidos, inclusive, como intelectuais, formados na cultura helênica.
Dentre eles estava Paulo de Tarso. Paulo, ainda jovem, partiu para estudar o
farisaísmo em Jerusalém e reunia em si elementos da cultura helênica.
Com a adesão de Paulo à Igreja
Cristã, os não judeus passaram a ser considerados na pregação dos apóstolos e
seus sucessores. Além disso, a mensagem cristã ganhou contornos mais nítidos e
próximos aos signos reconhecíveis pelos grupos eruditos, os quais figuravam
entre a elite romana.
O neoplatonismo, junto aos letrados
do Império, era uma corrente filosófica disseminada e presente nos debates
públicos. Com o advento dos discursos dos apóstolos defendendo a superioridade
do cristianismo sobre o paganismo ficou evidente para os eruditos, que aderiram
à nova fé (VEYNE, 2009, p. 23).
A conversão a uma religião, conforme
nos coloca Rodney Stark, implica no interesse por uma nova cultura e na
capacidade efetiva de dominar uma nova cultura (STARK, 2006, p. 50). A cultura
helenística foi responsável por promover a aderência de uma elite de estudiosos
à mensagem dos cristãos. Uma série de notáveis pagãos – os apologistas – se
converteram e passaram a fundamentar pontos da crença cristã e desenvolver uma
doutrina da fé essencial para formar uma nova cultura.
Nos anos 200-300, entre os pagãos
letrados o cristianismo era vivo e frequente. Durante os dois primeiros séculos
depois de Cristo, a população cristã era pequena, mas bastante forte em Roma.
As pregações públicas e fenômenos relatados como milagres eram promotores de um
crescimento exponencial no número dos adeptos, o que preocupava alguns
governantes romanos, em especial, Nero.
Esse imperador, em 64 d.C., segundo
Suetônio, teria incendiado Roma e acusado os cristãos de terem perpetrado o
incêndio. A partir disso, Nero passou a perseguir os cristãos e foi o responsável
pelo martírio dos dois principais apóstolos: Pedro e Paulo. No século seguinte,
o imperador romano Septímio Severo decretou que a negativa dos cristãos em
renderem-lhe culto como deus vivo era uma afronta ao Império e por isso os
cristãos foram perseguidos, martirizados e mortos. No ano de 250 d.C., houve a
grande perseguição de Décio e, em 300 d.C., a de Diocleciano, que se seguiu
devido à mesma motivação de Severo.
Segundo o historiador Paul Veyne
(2009), no século IV, ao deixarem de serem perseguidos pelos romanos a partir de
312 sob as ordens de Constantino, os cristãos constituíram um grupo que passou
a ser favorecido em detrimento do paganismo. Isso aconteceu porque no início do
século IV o Império romano havia sido dividido entre quatro dirigentes – uma
forma de garantir a melhor dominância das regiões devido à extensão que o
Império tinha chegado.
Na parte Ocidental, que englobava a
Gália, a Inglaterra e a Espanha, dominava o imperador Constantino, imperador
romano que promoveu o Edito de Milão – uma série de cartas escritas aos
governadores do império romano proclamando que aos cristãos deveria ser
permitido o culto religioso, sem dolo.
Na sequência, foi concedida uma
série de privilégios que acabou por fortalecer o cristianismo. Segundo
Daniel-Rops, em sua obra “A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires”, a Igreja,
agora reconhecida, passou a ter o direito de ser ajudada a reconstruir as suas
ruínas: o culto, agora lícito, teria condições para poder ser praticado
(DANIEL-ROPS, 1988, p. 410).
Constantino não transformou o
cristianismo em religião oficial do Império Romano, que continuou a ser fundamentalmente
pagão. Mas, promoveu condições para que, a partir da chamada paz
constantiniana, propiciada pelo Edito de Milão, o cristianismo se disseminasse
cada vez mais. Constantino passou a construir igrejas católicas e favorecer o
clero com doações, isenção de impostos e dispensa do serviço militar
obrigatório. Também concedeu às igrejas o direito de receber herança. Mesmo
assim, o império permaneceu pagão. A fé cristã do imperador era de domínio
privado, o paganismo era tolerado.
Entre 324 e 330, Constantino
transferiu a condição de capital do império da cidade de Roma, na Península
Itálica, para a cidade de Bizâncio, na parte oriental do império romano. Assim,
Bizâncio passou a se chamar Constantinopla, a cidade de Constantino. Com este
deslocamento de região do imperador, o cristianismo na parte oriental se
fortaleceu mais ainda.
O helenismo presente na meditação
sobre as verdades em relação à divindade produziu em Alexandria eruditos
convertidos ao cristianismo que se dedicaram a defender a fé cristã frente aos
usos e interpretações distorcidas dos pagãos. Foi o caso de Eusébio, de
Cesaréia, que se tornou bispo da Igreja Católica no século IV. As Escrituras
hebraicas são retomadas e valorizadas por meio da sistematização da
justificativa do cristianismo aos homens, pela eloquência de Eusébio, que
escreveu a “História Eclesiástica”, obra em que retrata a instauração do
cristianismo no Império Romano.
Os cristãos passaram a viver sob um
código de comportamento fundamentado ideologicamente, o que alterava
sobremaneira a moral do Império Romano. Uma nova moral sexual e de trato nas
relações sociais se instaurou, segundo Peter Brown (1989, p. 252). Neste
sentido, foi realizada uma série de reuniões de bispos para disciplinar os
fiéis e estabelecer respostas às apropriações que os pagãos faziam de
pressupostos cristãos, em que se destacam o Concílio de Niceia de 325 e o
Concílio de Constantinopla de 381. nda.
Em 395, o imperador Teodósio
promulgou o Edito de Tessalônica, tornando o cristianismo a religião oficial do
Império Romano. Nesse momento da igreja primitiva, a crença cristã exerceu um
apelo positivo junto aos cidadãos bem estabelecidos. Membros, amigos e
progenitores em altos escalões – frequentemente, dentro da família imperial –
se multiplicavam. Com essa associação às classes abastadas, a incorporação de
uma nova moral foi facilitada, pois logo os populares passariam a imitar as
novas realidades sociais que se instauravam, derivadas da moral cristã.
MUDANÇAS SOCIAIS
A moralidade trazida pelos cristãos
alterou a sociedade romana. As mulheres, por exemplo, na crença cristã, tinham
um status elevado – diferente da realidade da tradição
greco-romana, em que a mulher era colocada em segundo plano. Para os cristãos,
a dignidade da mulher era a mesma do homem e isso se configurou como uma
novidade.
As relações matrimoniais cristãs
pressupunham a castidade, a monogamia, a indissolubilidade matrimonial –
elementos estranhos para a prática dos romanos. O infanticídio feminino e o
aborto foram perdendo espaço pois o cristianismo proibia estas práticas. Os
casamentos deviam observar a fidelidade e a castidade, algo incomum entre os
romanos da elite, que frequentemente se divorciavam na busca de dotes e de
apoios políticos.
A ajuda mútua, o socorro aos
necessitados e vitimados por epidemias e guerras passou a ser uma prática
cristã que criou uma rede filantrópica entre as comunidades, recebendo muitas
doações de mulheres ricas. O poder político interferiu na sociedade, seguindo a
moral da religião oficial do império, e os sacrifícios de animais para os
deuses pagãos passaram a ser interditados, assim como as lutas de gladiadores.
Os praticantes de pederastia passaram a ser condenados à morte.
No mundo romano, a beneficência
tinha um caráter político, pois quando se praticavam doações ou auxílios
pressupunha-se uma relação de troca, com vantagens para o benfeitor. Foram
comuns, para acalmar as revoltas urbanas, as doações de cereais e a promoção de
jogos públicos, como a luta de gladiadores, por exemplo. Mas essas ações apenas
refletiam um interesse político de trazer uma pacificação que as armas do
exército nem sempre garantiam.
Por outro lado, a prática de ajuda
mútua dos cristãos possuía um sentido humanitário e religioso, fundamentado na
exortação moral cristã ascética. A caridade cristã refletida no auxílio aos
pobres, doentes e viúvas era uma nova realidade, uma nova cultura que aos
poucos foi sendo incorporada.
Transcorridos quase cem anos do
Edito de Milão, que deu a liberdade de culto aos cristãos na extensão do
Império Romano, a presença dos povos bárbaros na parte ocidental era uma
realidade. As populações das províncias romanas progressivamente se
cristianizavam e se incorporavam à igreja. Nas cidades, o cristianismo se torna
comum, mas nas zonas rurais do império o que prevalece é o paganismo. Aliás, o
termo pagão advém de paganus, termo aplicado pelos romanos aos
camponeses, de forma pejorativa dando a denotação de rusticidade e falta de
modos urbanos (BROWN, 1999). Com o advento do cristianismo, “pagão” tornou-se
símbolo de politeísmo e de práticas da antiga religião do panteão romano.
Um ponto interessante de ser notado
em relação às contribuições do cristianismo para uma mudança social, ainda na
época do império romano, é que nos centros urbanos passaram a existir pontos
estratégicos missionários e povoados de cristãos que eram tutelados por bispos.
Com a presença de várias cidades do império com grande número de cristãos, além
do bispo, também um presbítero passou a ser responsabilizado pela administração
da fé. Os bispos eram iguais em autoridade. Entretanto, algum deles podia distinguir-se
por dotes pessoais.
Com o aumento de tamanho da
população cristã instituiu-se uma diocese. Deste modo, a eleição de
dioceses se comunica com o aumento de fiéis, mas também possui relação com a
criação de novas cidades. Um agrupamento de dioceses formava uma província
eclesiástica. A reunião de várias províncias eclesiásticas formava um patriarcado,
sendo os cinco principais do Império os patriarcados de Alexandria,
de Antioquia, de Roma, de Constantinopla e
de Jerusalém.
Com a tradição hebraica, os cristãos
possuem o elo de igual crença em um Deus único que garante a ordem moral do
mundo dos homens, a crença nos profetas e a crença na vinda do Messias. A
partir de Cristo, insere-se a essa ideia a preparação incessante para entrar no
Reino de Deus, após a vida terrena, opondo, assim, a vida segundo a carne da
vida segundo o espírito.
De tal modo, a vida espiritual se
torna um novo critério de juízo, visto que o homem, através da fé em Cristo,
passou a participar da graça, conquistada pela morte e ressurreição. Nasce a
ideia da reunião dos homens em uma comunidade universal e se associa ao nome
cristão o termo católico, que quer dizer universal, o que significa
que não existem prerrogativas para se aderir a fé, não existe uma etnicidade
particular, nem um conjunto de características, a não ser a fé em Cristo.
O cristianismo católico colocou o
valor de cada homem na capacidade de decidir viver em conformidade com o
exemplo de Cristo. Mas a condição fundamental para viver em conformidade com
Cristo era a possibilidade de compreender o significado de sua mensagem – e
essa tarefa era própria da filosofia. Assim, a filosofia cristã dedicou-se
antes a encontrar um caminho pelo qual os homens poderiam compreender a
revelação em vez de conhecer novas verdades. Nesse sentido, desenvolveram-se os
dogmas da Igreja Católica.
Segundo Agostinho de Hipona,
importante bispo do século IV, na obra “A cidade de Deus”, cada homem explora
como pode, melhor ou pior, os segredos da Sagrada Escritura (2000, p. 1452).
Sem dúvida, alguns filósofos demonstraram compreender a utilidade moral que a
filosofia grega, utilizada como instrumento, propiciaria à retórica cristã e
escreveram, bem como realizaram pregações públicas, que se constituíram como importantes
fontes históricas para estudos.
Nesse sentido, o cristianismo
promoveu uma nova sociabilidade para os romanos, retomando o sentido da
fidelidade ao Império, situando-a na expressão da mesma fé do governante. A
noção de fides era fundamental nas relações entre os romanos, pois implicava em
obrigações, reciprocidade e apoio de uma clientela em relação a um senhor. No
novo âmbito do império cristão, essa relação se manteve atrelada à fé cristã.
A oficialização do cristianismo como
religião oficial do Império Romano, em 395, pelo imperador Teodósio, através do
Edito de Tessalônica, abriu portas para que a filosofia cristã pudesse atuar na
legitimação da política.
POLITICA
Um império cristão exigia uma nova
justificação para o poder do governante, visto que o sentido de autoridade para
os romanos estava construído sobre crenças pagãs. Com Otávio Augusto, Roma
conheceu a associação do governante com a ideia de deus encarnado, mas isto não
era mais crível em uma sociedade cristã. De fato, não podemos ignorar a
influência que as Sagradas Escrituras produziram sobre a cultura ocidental a
partir dos romanos.
A realização de cultos ao governante
remonta ao início do período helenístico, com o domínio de Alexandre sobre toda
a região da Ásia Menor. Anterior a isso, não temos notícia desta prática de
elevação de um líder à condição de divindade nas cidades gregas. Com a chegada
de Alexandre como rei / imperador (basileus) e seus sucessores, construiu-se a
ideia de que o poder emanava de Alexandre e não da cidade. Deste modo, as
cidades gregas estabeleceram cultos aos governantes helenísticos como uma
tentativa de aquiescer a um novo tipo de poder, o dos reis gregos.
Esse poder se tratava de uma
novidade. Sob o domínio romano, a prática de culto aos governantes como forma
de retribuição (e novos pedidos) às benesses por eles concedidas já se tornara
tradicional nas cidades da Ásia Menor. Assim, no início do Regime do
Principado, em 27 a.C., quando o senado romano conferiu a Otávio o título de
Augusto, rapidamente se desenvolveu o culto à figura imperial do princeps
surpreendentemente a partir de uma iniciativa das províncias romanas na Ásia
menor.
Segundo Thomas Woods, o cristianismo
é o principal veículo de promoção da ideia de civilização após a desintegração
do Império Romano, de tal modo que nossas próprias ideias contemporâneas em
relação ao belo, o bom e ao que devemos buscar como promotor de desenvolvimento
social advém de um arcabouço teórico de base cristã (WOODS; THOMAS, 2008, p.
11). Sendo assim, é natural que o cristianismo tenha se incrustado na estrutura
da política, visto que esta era praticada e teorizada a partir do
desenvolvimento de justificativas aceitas socialmente.
Quando o império se torna
oficialmente cristão (no século IV), antes mesmo de se completar um século, as
estruturas políticas romanas estão definitivamente suplantadas. O império
romano, que era essencialmente urbano, estava em processo de ruralização e a
cidade foi cercada por mosteiros e conventos muito povoados (ARIÈS; DUBY, 2000,
p. 280).
Não apenas esta mudança geopolítica
foi derivada da adesão à nova fé, mas também outras mudanças estruturais
aconteceram. A partir do século IV, as legislações romanas trouxeram a figura
do imperador associada às virtudes cristãs e o bem comum da política inserido
dentro da perspectiva de fim último cristão, admitindo por exemplo, que era na
vida após a morte que se teria a redenção e não na vida terrena. Ademais, ao
governante passaram a ser cobradas práticas cristãs que alteraram as práticas
costumeiras da política. O assassinato de opositores é substituído – na teoria
pois muitas vezes a prática se mostrou diferente – pela misericórdia e pelo
perdão.
A submissão intelectual de cidadãos
cultos, tanto no Império do Oriente como no do Ocidente propiciou uma
sistematização lógica das crenças cristãs. Os concílios, que eram reuniões dos
bispos católicos para tratar de questões disciplinares e dogmáticas acabaram
contando com a frequente participação do imperador, que passa a utilizar esse
espaço para fundamentar a lógica política de seus domínios.
Assim, no concílio de Constantinopla
podemos perceber que a delimitação da submissão hierárquica das sedes cristãs
das cidades à ordem de prioridade estabelecida pelo primado de Roma sobre
Constantinopla, desta sede episcopal sobre Alexandria e desta sobre Antioquia
também reflete a hierarquia de administração e poder político do Império Romano
(RUNCIMAN, 1977, p. 33).
Outro fato de destaque é a
associação do governante ao título de defensor christianistas, o defensor da
cristandade. Com a interação de grande parte do império com a conquista e
apropriação de povos bárbaros que se estabeleceram em territórios que eram dos
romanos, a garantia de dominância cristã sobre regiões também trazia a
autoridade romana, tanto pela adesão a uma fé oficial como pela dissipação
cultural.
Havia uma necessidade de se
construir unidade e concentração de autoridade na figura imperial romana, a
qual foi conseguida com a associação de seu cargo com a condição de sagrado. A
escolha de um rei na tradição judaica advém de um pedido do povo a Deus e, por
isso, trata-se de uma escolha divina sobre um homem considerado justo e fiel à
divindade.
No cenário romano, a partir do
século IV, período da antiguidade tardia, o direito divino de governar é
construído por meio da monarquia sacratíssima, a qual visa colocar um crivo
moral sobre as ações de contestação do poder do governante legítimo, muito
frequentes nos sucessivos governos que se seguem no período. Desenvolve-se um
culto imperial a partir desta ideia, o qual foi seguido pelas monarquias
romano-germânicas que se estabeleceram no território dos romanos.
Assim, além de imitarem o imperador
romano (imitativo imperii) pela repetição do uso de vestes e cerimoniais
especiais, os monarcas romano-germânicos também cunham moedas, fundam cidades,
favorecem com doações as igrejas, buscam junto aos bispos a fundamentação
teórica de sua legitimidade ao receber a unctio (unção de óleo
sacro em sua cabeça, como sinal de sua escolha pela participação nos dons
divinos e no cumprimento das ações convenientes à graça).
As tribos bárbaras – visigodos,
francos, suevos, ostrogodos, vândalos etc. – em maior ou menor grau, tinham um
caráter bastante simples de sua realeza: seu fundamento era a força, o
prestígio guerreiro, não o Direito; a noção (abstrata) de res publica ficou
restrita aos âmbitos religiosos – a Igreja foi a grande mantenedora da tradição
romana.
Neste cenário, veremos vários
monarcas tentando se associar a imagem de Constantino na busca de que isso
legitime uma expressão de cristianismo da parte deles, mais puro e mais
idealizado do que o de seus concorrentes políticos. O rei dos francos, Clóvis,
tentará se impor como o novo Constantino. Ademais, a adesão a hierarquia da
igreja católica de membros ligados às famílias senatoriais romanas e de uma
nobreza que participava da vida política colocava em relação bastante estreita
a justificativa ideológica cristã do poder político.
REINOS CRISTÃOS
Os germânicos começaram a
deslocar-se para terras do centro e sul da Europa e foram atraídos a entrar no
Império Romano a partir de suas fronteiras, nos primeiros séculos da Era
Cristã. Eventualmente, o governo imperial admitia o ingresso de povos inteiros
em seu território. Diversos reinos romano-germânicos se formaram, dentre os
quais os reinos romano-germânicos visigótico (na atual Península Ibérica),
ostrogótico e, posteriormente, o lombardo (na atual Itália), anglo-saxões (na
atual Grã-Bretanha) e franco (na atual França). Uma preocupação, no entanto,
era de que estes povos se cristianizassem, dessa forma missionários, vindos do
Império, introduziam-se entre os bárbaros. Em um primeiro momento, os godos
aderiram a religião cristã, mas sob uma forma herética, o arianismo.
O poder do bispo de Roma foi
reconhecido pelo imperador romano Valentiniano III, com a publicação do Edito
da Supremacia Papal, em 445. A partir disso, os romanos conduziram um processo
de “redistribuição” da civitas cristã, ou seja, da ideia de
romanidade cristã, integrando esses povos considerados de cultura inferior às
formas de cultura delineadas pela tradição romana cristianizada.
Diocleciano e Constantino lideraram
este processo que foi dominado pela crise devido a uma série de heresias
cristãs que foram se sucedendo.
A instrumentalização do cristianismo
e sua institucionalização social minimizou o duro golpe que as guerras
políticas internas, o empobrecimento e a mistura das famílias nobres com a
massa do povo acabaram por desferir na identidade romana, pela perda daqueles
que eram considerados os primeiros e verdadeiros romanos, os patrícios, da
linhagem sagrada que remontava à fundação da própria Roma.
A necessidade de uma maior unidade
para o Império implicava na procura por uma nova ideologia impulsionadora e
unificadora que propiciasse a restauração, a renovação e o renascimento do
antigo esplendor e glória de Roma. Esta ideologia foi forjada dentro da igreja
católica, o que explica o grande crescimento da fé cristã tanto em suas funções
junto à sociedade quanto em seu caráter político-administrativo.
Nos séculos IV e V os bispos passam
a acumular novas funções sociais e econômicas e foram relevantes nos reinos
romano-cristãos que se formaram: Isidoro de Sevilha na Hispânia visigoda,
Martinho de Tours, no reino dos francos, entre outros.
Na parte oriental do que era o
império romano, no entanto, não existiram invasões bárbaras e essa região
permaneceu como herdeira da tradição oriental dos gregos. O distanciamento
entre as duas partes do império, a ocidental e a oriental engendrou diferenças
significativas na igreja também porque a cristandade helenística do oriente não
estava exposta à aculturação que a parte ocidental alimentava com as monarquias
romano-germânicas. Essas diferenças acabaram levando ao Cisma do oriente, que
foi a separação entre as igrejas de Bizâncio (antiga Constantinopla) e de Roma
em 1054.
É religião e é História!
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